Diaulas Costa Ribeiro

Diaulas Costa Ribeiro

Direito Médico e Biodireito


1 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:53:29; Atualizado em 11/02/2008 11:58:42 O bolero do revel: crítica à proposta de reforma do Código de Processo Penal publicada no Diário Oficial de 25/11/94
2 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:28:52; Atualizado em 03/02/2008 01:31:42 A reinvenção do Ministério Público: a história do futuro
3 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:32:09; Atualizado em 03/02/2008 01:33:45 Código de procedimentos do Promotor de Justiça Criminal
4 Autor:   - Incluido em 01/11/2001 11:31:29; Atualizado em 11/02/2008 12:14:10 DECLARAÇÃO DE BALI
5 Autor: a - Incluido em 01/11/2001 11:31:29; Atualizado em 03/02/2008 01:21:12 DECLARAÇÃO DE HONG KONG
6 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:34:36; Atualizado em 03/02/2008 01:37:37 Deuses, Monstros e a segurança pública
7 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:37:45; Atualizado em 03/02/2008 01:38:50 Eutanásia: Viver bem não é viver muito
8 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 01/11/2001 11:08:16; Atualizado em 01/11/2001 11:24:30 Eutanásia: Viver bem não é viver muito
9 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:39:05; Atualizado em 03/02/2008 01:41:07 Habeas-Corpus no Brasil: casos concretos
10 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:41:21; Atualizado em 03/02/2008 01:42:59 Homicídio durante o parto
11 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:43:16; Atualizado em 03/02/2008 01:44:09 Indulto necessário (ou causa mortis)
12 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:44:14; Atualizado em 03/02/2008 01:44:59 Júri: um direito ou uma imposição?
13 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:45:02; Atualizado em 03/02/2008 01:46:10 Lei n.º 7.960, de 21 de Dezembro 1989
14 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:46:17; Atualizado em 03/02/2008 01:52:16 Mudança de hábito: uma beca para o Ministério Público
15 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:52:27; Atualizado em 03/02/2008 01:53:25 Mudando o alvo das armas
16 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:54:37; Atualizado em 03/02/2008 01:55:24 O crime de estupro e o transexual
17 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 01/11/2001 11:31:29; Atualizado em 17/07/2004 00:26:12 O crime de estupro e o transexual
18 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:55:42; Atualizado em 03/02/2008 01:56:41 O Ministério Público e o controle externo dos procedimentos de reprodução medicamente assistida
19 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:56:48; Atualizado em 03/02/2008 01:58:02 Segurança cidadã e segurança do Distrito Federal
20 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:58:06; Atualizado em 03/02/2008 01:58:43 Sex-shop e tolerância zero: é proibido proibir!
21 Autor: Diaulas Costa Ribeiro - Incluido em 03/02/2008 01:58:58; Atualizado em 11/02/2008 11:25:09 Transexuais: a reabolição da escravatura e o Ministério Público
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  Eutanásia: Viver bem não é viver muito
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Diaulas Costa Ribeiro
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                Qualquer acadêmico de Direito, mas não só, já ouviu de algum professor que o direito à vida é supremo. Este é um discurso fácil — mesmo sem a ideologia dos grupos anti-aborto — principalmente nos tribunais do júri. O que é contraditório é que essa ode com estribilho constante seja declamada em homenagem a algum morto. Nunca a um vivo, salvo em favor dos condenados à cadeira elétrica ou assemelhados.

                O acórdão que passo a comentar introduz o tema fundamental deste artigo. Foi proferido pela Corte de Apelo de Londres, no dia 24 de Outubro de 1996, tendo participado do julgamento o Lord Justice Butler-Sloss, relator, e os Lords Justices Waite e Roch, vogais. O recurso interposto contra a decisão de um juiz singular teve, como apelante, a mãe de uma criança de um ano e meio de idade, nascida com atresia biliar provocada por uma enfermidade incurável do fígado. Necessitava de um transplante, mesmo assim com reduzidas possibilidades de sobrevida. Sem ele, era certo que não viveria mais do que dois ou três anos. A parte recorrida era a municipalidade, representando um hospital infantil londrino. Intervieram dois curadores de menores (guardian ad litem).

                Os pais, médicos ingleses radicados na África do Sul, já tinham feito várias tentativas de minimizar o mal. Sem sucesso, deslocaram-se a Londres em busca de melhores recursos, recusando-se, contudo, a autorizar a cirurgia, tão logo os pediatras chegaram a um diagnóstico definitivo. Como é costume na Inglaterra, o próprio hospital buscou a autorização judicial concedida em primeira instância. Nesse ínterim, a família retornou ao país de residência, ficando os pais obrigados a apresentar a criança. Apresentou-se apenas a mãe, mas para recorrer.

                Para os médicos, o transplante poderia prolongar a vida da criança. Para os pais, entre a certeza e a dúvida, era preferível que o filho mantivesse uma boa qualidade de vida pelo tempo provável que lhe restava, sem a dor e sem o stress produzidos pelo pós-operatório e o longo sofrimento que a intervenção provocaria, inclusive porque nada disso asseguraria a cura e a sobrevivência. As complicações imediatas e mediatas, comuns em qualquer transplante, poderiam até mesmo reduzir a expectativa de vida que se tinha. Mas o juiz acolheu as opiniões médicas e supriu o consentimento solicitado.

                A Corte de Apelo ponderou todos esses argumentos e deixou de lado o caminho mais curto que a sentença havia encontrado. Decidiu que no confronto entre as razões médicas e as razões dos pais deveria prevalecer o interesse do menor, o seu bem-estar. Os médicos buscavam prolongar sua vida. Os pais queriam qualidade de vida. E manter a criança viva, afirmou-se, não implicava mantê-la vivendo bem. A vida pela vida não era a certeza da melhor opção em seu favor. E a difícil decisão dos pais não poderia ser substituída pela frieza de uma solução técnica, até porque não seria sincero afirmar que o juiz pudesse melhor assegurar o interesse do menor do que os seus próprios pais, ambos com formação acadêmica, o que lhes permitia plena consciência da gravidade do quadro. Inclusive, estes é que sofreriam com o filho a dor imposta pela justiça. Portanto, os pais, e não os juízes, é que deveriam decidir se a criança voltaria ou não à Inglaterra para ser operada, se isso fosse, a juízo deles, o melhor para ela: «The welfare of the child was the paramount consideration and the very strong presumption in favour of a course of action which would prolong life and the inevitable consequence for the baby of consent not being given had to be recognised. But to prolong live was not the sole objective of the court and to require it at the expense of other considerations might not be in a child’s interests». Os Lords Justices deram provimento ao apelo e negaram a autorização, ainda que a sentença recorrida tenha invocado precedentes de 1981 desse mesmo tribunal, todos decidindo suprir a autorização dos pais, se bem que recusadas por questões religiosas.

                Essa decisão constitui um paradigma para a discussão necessária sobre a flexibilização do direito à vida, que não se confunde com o direito apriorístico de estar vivo e nem autoriza quem quer que seja a sair matando por aí.

                Se o bem-estar de uma criança — e de um ser humano em geral — tem mais relevância do que o seu tempo de vida cronologicamente marcado, é inevitável concluir que foi inserido um novo elemento para o conceito desse direito. A vida, é a conclusão a que se permite chegar, só deve prevalecer como direito fundamental oponível enquanto for possível se viver bem. Se a saúde de um corpo já não assegura o bem-estar da vida que nele vive, outros direitos deverão ser considerados, sob pena de o direito à vida se transformar em dever de sofrimento, em sadismo. É o princípio in dubio abstine, pouco usado em unidades hospitalares infantis. Em adultos, a abstenção ou a suspensão de algumas terapêuticas para evitar prolongação do sofrimento é comum e não se confunde com outros institutos, marcadamente com a eutanásia.

                A palavra eutanásia tem sido utilizada como a ação médica que tem por finalidade abreviar a vida de uma pessoa. Para os casos de omissão, instituiu-se no Brasil a palavra ortotanásia, inspirada em trabalho do penalista português Jorge de Figueiredo Dias. Eutanásia seria, entre nós, eutanásia ativa; ortotanásia, eutanásia passiva. Contudo, não há qualquer justificativa científica para essa distinção terminológica, antiquadamente adotada pelo anteprojeto da parte especial do Código Penal — ambas previstas como desdobramentos do homicídio —, que propõe punir a primeira com pena de 3 a 6 anos de reclusão. A segunda, rotulada como causa de não-crime (exclusão da ilicitude ou da tipicidade?), não teria obviamente qualquer punição.

                Ao usar essa dicotomia, não se percebeu que no sistema brasileiro a ortotanásia não passaria de uma eutanásia comissiva por omissão, não se justificando o tratamento diferenciado que se pretende implementar. O tipo penal, se fosse o caso de punir essas condutas, deveria ser o mesmo. Isso porque o que merece distinção não é a forma de execução — se morte por ação ou omissão —, mas o consentimento ou não do paciente. Sobre o consentimento, também é injustificável a proposta do anteprojeto ao aceitar, na ortotanásia, a autorização dos parentes como exclusão da ilicitude, e não reconhecer, na eutanásia, o consentimento do próprio titular da vida. No resumo, se a vida é a mesma, os critérios não poderiam ser diferentes.[1]

                Toda essa conceitualização está, há muito, superada na discussão jurídica do assunto. Modernamente, eutanásia é a morte de uma pessoa com grande sofrimento decorrente de doença, sem perspectiva de melhora, produzida por médico, com o consentimento dela. O consentimento do paciente exclui a ilicitude dessa intervenção, o que consagra o princípio da vontade livre como garantia suprema do exercício e renúncia a direitos fundamentais. Eutanásia não é morte por piedade; é morte por vontade.

                A tradicional distinção entre doença física ou psíquica — esta última sequer passou pela idéia da projeto do Código — não se justifica mais no conceito de eutanásia. Nem mesmo a classificação das doenças pela origem. Esta classificação permitiria, no máximo, mensurar o tempo provável de sofrimento do paciente. As doenças somáticas (ou biológicas) podem produzir a morte em dias ou semanas. As não-somáticas (ou psiquiátricas) podem prolongar o sofrimento por meses ou anos. Mas esse critério é relativo e não é fundamental para se decidir pela eutanásia. Um câncer consumptivo pode levar meses até produzir uma morte. Por outro lado, as doenças somáticas não têm como efeito interferir na consciência. Mas não está descartada a possibilidade de pacientes com câncer ou sindrômicos da imunodeficiência sofrerem distúrbios psiquiátricos. Logo, está superada a distinção entre doenças físicas ou psíquicas, não havendo também qualquer justificativa para a diferenciação entre doenças somáticas ou não-somáticas. A opção do anteprojeto do Código Penal pelas doenças físicas não tem critério científico. O sofrimento agudo para justificar a eutanásia deve ser em decorrência de doença. O legislador não deveria passar disso.

                Com fundamento científico idêntico mas solução distinta, o aborto, na proposta do anteprojeto, recebeu uma nova causa de exclusão da ilicitude, caso haja fundada probabilidade, atestada por dois outros médicos, de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais. Isso, em outras palavras, é uma espécie de eutanásia. Permite-se antecipar a morte para evitar (ou mesmo interromper) o grave sofrimento provocado por doença somática ou não-somática. Por falta de técnica e de domínio de questões médicas básicas, o anteprojeto fala em «probabilidade de o nascituro apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais», quando anomalias mentais no nascituro, no que ainda não nasceu, são praticamente impossíveis de se detectar. Mesmo nos nascidos e crescidos isso não é fácil, não é perceptível a olho nu. É até provável que o projeto tenha confundido anencefalia (falta de cérebro ou de alguns ossos cranianos) com doença mental, com anomalia não-somática. Mas anencefalia é defeito do hardware e não do software. Portanto, com os mesmos princípios aplicáveis ao aborto do feto com malformação se resolveriam as questões concernentes à eutanásia: excludente de ilicitude.

                Bem próximo da eutanásia está o suicídio assistido; mas não se confundem. Nem o suicídio assistido se confunde com a indução, instigação ou auxílio ao suicídio, crime tipificado no artigo 122 do Código Penal. Na eutanásia, o médico age ou omite-se. Dessa ação ou omissão surge diretamente a morte. No suicídio assistido, a morte não depende diretamente da ação de terceiro. Ela é conseqüência de uma ação do próprio paciente, que pode ter sido orientado, auxiliado ou apenas observado por esse terceiro.

                Tanto na eutanásia quanto no suicídio assistido, deve ser observada a vontade do paciente, o seu consentimento. É a morte voluntária. Independente de ser espontânea — pode ser sugerida por terceiro, inclusive pelo médico, o que normalmente ocorre — o consentimento nesses casos deve ser reconhecido como excludente de ilicitude. É possível que se alegue até mesmo uma excludente de tipicidade — seja do crime de homicídio ou de participação em suicídio — porque o médico não passaria, nesses dois casos, de uma longa manus do paciente. Essa conclusão não valeria para a eutanásia porque é necessária a condição de médico para axecutá-la. Essa exigência que habilita o médico, e só ele, tem como conseqüência a imposição de um juízo técnico efetivo, e não apenas ético, que deve anteceder sua intervenção. No caso do suicídio, em que a participação do terceiro se faz como auxílio, normalmente na preparação das drogas a serem utilizadas, há a conveniência de que o partícipe seja também um médico. Mas poderia ser um farmacêutico ou uma enfermeira, de quem se exigiria juízos técnicos e éticos, como se exige do médico. Na Suíça, por exemplo, o suicídio assistido por não-médicos não é ilegal, além de constituir uma prática institucionalizada. Nestes casos, em vez de exclusão de ilicitude, a assistência constituiria uma conduta atípica.

                Dentre os casos consentidos, acima denominados de morte voluntária, os holandeses assimilaram mais facilmente o suicídio assistido. Nos Estados Unidos, mesmo com as reações conhecidas, esta opção tem menos opositores do que a eutanásia. Mas provavelmente o maior problema a ser enfrentado na discussão desses temas não seja esse. Na Holanda, único País em que a eutanásia e o suicídio assistido são ostensivamente praticados, não há uma lei expressa que os autorize. Entretanto, sob específicas diretrizes estabelecidas desde 1984 pela Dutch Government Comission on Euthanasia (Comissão Governamental Holandesa para a Eutanásia), regulamentadas pela Royal Dutch Medical Association (Conselho Real de Medicina) e Ministério da Justiça, a intervenção médica para abreviar a morte não é considerada criminosa, desde que haja: a) pedido do paciente; b) manutenção desse pedido (não basta pleitear uma vez); c) irresignação do paciente com o seu sofrimento; e, por fim, d) a concordância de outro médico para a implementação da medida. A execução da eutanásia é feita com duas injeções. A primeira induz o paciente ao coma; a segunda a uma parada cardíaca. No suicídio assistido a injeção é única, numa dosagem letal.

                A guia de óbito em qualquer dos casos não menciona a causa mortis como morte natural. O médico, contudo, envia um relatório circunstanciado à autoridade médica do local onde ocorreu a intervenção e ao Ministério Público. O Ministério Público decide se houve ou não eutanásia ou suicídio assistido conforme as diretrizes oficiais. Tendo havido, arquiva o relatório. Ao contrário, processa o médico ou médicos responsáveis.

                De plano, esses dois procedimentos só são permitidos com o consentimento do paciente. Sem ele e sem a presença das outras exigências, a eutanásia não passaria de uma dissimulação, em princípio (explico no parágrafo seguinte o motivo da reserva), de um homicídio como em qualquer outro país, tipificado no artigo 293 do Código Penal holandês: «A person who takes the life of another person at that other person’s express and earnest request is liable to a term of imprisonment of not more than twelve years or a fine of the fifth category». No caso de suicídio assistido, ainda que se presuma o consentimento, pode haver algum defeito na sua obtenção ou ausência de outros requisitos. Também não passaria de uma dissimulação de participação criminosa em suicídio: «Art. 294. A person who intentionally incites to commit suicide, assists in the suicide of another, or procures for that other person the means to commit suicide, is liable to a term of imprisonment of not more than three years or a fine of the fourth category, where the suicides ensues». A tradução equivale, fora as penas, aos textos dos artigos 121, caput, e 122, caput, do Código Penal brasileiro. Afinal, os dois países adotaram como base da parte especial dos seus códigos o projeto do Código Penal suíço, de 1916.

                Com 16 milhões de habitantes e a maior densidade demográfica do mundo, três por cento de todas as mortes registradas na Holanda em 1995 (Relatório da Comissão Governamental Holandesa para a Eutanásia, de 15/02/1999), decorreram desses procedimentos, que totalizaram 3.600 casos, incluindo-se nesse número 900as mortes sem o consentimento dos pacientes. Destes casos, 85% foram considerados lícitos, mesmo sem a autorização; 15% estão sendo investigados pelo Ministério Público. A maioria desses pacientes era incapaz de consentir por demência absoluta e a exclusão da ilicitude adveio do estado de necessidade no interesse do doente, equiparando-se à situação jurídica da eutanásia. Sem  necessidade de autorização de familiares, o médico é confrontado com dois valores bem clássicos: manter o paciente vivo por mais tempo ou acabar com o seu sofrimento insuperável. Há um conflito da quantidade com a qualidade de vida. E o médico pode optar pela segunda alternativa, com base no artigo 40 do Código Penal, que equivale ao artigo 23 do nosso Código: «A person who commits an offense as a result of a force he could no be expected to resist is not criminally liable». É o que denomino homicídio humanitário.

                Os problemas conceituais, contudo, não acabaram. A morte que decorre da recusa do paciente à terapêutica recomendada pelo médico não tipifica eutanásia, nem suicídio assistido, nem homicídio humanitário. Tão pouco permite ao médico que interfira à força, invadindo a integridade corporal do paciente a pretexto de salvá-lo. O Código de Ética Médica brasileiro ainda recomenda tal intervenção, baseando-se no §3.º do artigo 146 do Código Penal. Isso ainda seria aplicável se o direito à vida tivesse atualmente um caráter absoluto. Já o teve, à época da edição do Código, talvez. Hoje, como já foi dito, a própria renúncia aos direitos e garantias individuais, um exercício de liberdade, constitui um direito e uma garantia individual, não se podendo impedir que uma pessoa morra voluntariamente, se estiver sofrendo sem alívio, em decorrência de doença grave. Viver bem é um direito maior, mais importante do que viver muito. Foi esse o fundamento básico da decisão da justiça inglesa acima mencionada.

                O projeto do Código Penal encaminhado ao Ministro da Justiça, em vez de viabilizar o reconhecimento desse direito, propôs expressamente a punição da conduta que classificou como eutanásia. Na verdade, propôs-se a troca de seis por meia dúzia, porque essa solução já está enquadrada na figura do homicídio privilegiado por relevante valor moral. O projeto impede um tratamento flexibilizado dessas situações, quando deveria ter tido a ousadia de afastar a ameaça da pena numa época em que o Direito Penal tem se mostrado de absoluta inutilidade, mormente em casos como estes, com motivação humanitária. Se a proposta for aprovada ou rejeitada, o direito ao exercício livre da opção por não viver mal continuará negado. O consentimento e a vontade do paciente continuarão relegados para um plano de direitos sem direito; de muitos direitos, direito nenhum. O argumento para isso será o mesmo de sempre: a vida é o bem supremo. Como disse, um discurso fácil, facílimo direi melhor. E de tão fácil soa ingênuo, para não dizer hipócrita, num País onde mais de 30 mil pessoas morrem assassinadas todos os anos. Todas elas eram iguais perante a lei e estavam sob o manto protetor da Constituição Cidadã e da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Talvez ainda se diga que agora elas são mais iguais e mais protegidas; que os direitos humanos são extensivos aos mortos, ou que a defesa dos direitos humanos das vítimas mortas constitui o aperfeiçoamento dos direitos e das garantias do cidadão brasileiro...

                A não-invasão corporal para preservar a vida contra a vontade do paciente, a eutanásia, o suicídio assistido e o homicídio humanitário praticados por médico, são temas que merecem dos juristas e políticos mais atenção, mais coragem para inovar dentro da realidade, afastando as influências e o fundamentalismo dos dogmas de ordem religiosa ou outros equiparados. Num país laico, conceitos dessa origem não devem ser compartilhados com o Direito Penal, nem com qualquer outro ramo do Direito. Além do mais, há um despudor dos hospitais nos custos cobrados pelos tratamentos intensivos e de doenças prolongadas, sem qualquer perspectiva ou esperança de melhora. Constituem uma indústria que se alimenta do sofrimento exagerado dos pacientes, do ônus impagável por eles ou por suas famílias e majoritariamente pelo erário, pelo SUS. O doente sofre, a família padece e o povo paga a conta. Enquanto isso, o Estado se afirma como Estado-Poder e se distancia do Estado enquanto Povo. A criatura se volta contra o criador; o acessório contra o principal.

                Todo esse estado de coisas — que só é conveniente às empresas hospitalares — se mantém graças à ficção jurídica da irrenunciabilidade ao tempo de vida, quando irrenunciável deveria ser à qualidade dela. Mas disso não cuidou o anteprojeto do Código. Disso cuida-se muito pouco no Brasil. Aqui, com o Código ou com o anteprojeto, os pais do garotinho britânico que ilustrou o início deste texto seriam enviados para a cadeia, pouco importando quem cuidaria dele. Aqui, a lei vale para todos. Aqui, dura lex, sed lex. Aqui, tudo isto é coisa para inglês ver!


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                [1] Alan Meisel, The Right do Die, v. 2, 2.ed, John Wiley & Sons, New York, p. 450-3.